quinta-feira, 31 de maio de 2007

Breve História da Guerra do Contestado - II

ANTECEDENTES & PRECEDENTES

Para saber desta guerra que, para efeito de estudos, divide-se
em três momentos, de fanatismo, de banditismo e de genocídio, fazse
necessário conhecer alguns antecedentes e precedentes.

Questão de Limites
Desde a formação do Império Brasileiro, as províncias de São
Paulo e Santa Catarina não conheciam seus limites. Em 1853, com a
criação da Província do Paraná, desmembrada de São Paulo, abriuse
o debate sobre a linha limítrofe, discussão que passou a ser mais
acirrada entre as duas unidades da federação após a Proclamação da
República. A questão envolvia o chamado “Território Contestado”,
localizado entre os rios Iguaçu (ao Norte) e Uruguai (ao Sul), da Serra
Geral (a Leste) até a fronteira com a Argentina (a Oeste), na época sob
administração paranaense.
Enquanto as partes discutiam fórmulas para resolver o assunto,
o Império havia decidido em 1789 que, provisoriamente, caberia ao
Paraná administrar as terras a Oeste do Rio do Peixe. Em 1900, o Governo
de Santa Catarina impetrou ação judicial contra o Estado do Paraná no
Supremo Tribunal Federal, reclamando direitos sobre todo o território.
Em 1904, a Corte manifestou-se oficialmente pró-Santa Catarina, decisão
que foi confirmada em 1909 e ratificada em 1910, determinando que os
paranaenses entregassem a administração das terras aos catarinenses.
O Governo do Paraná, apoiado pela população, rebelou-se e não acatou
a decisão, com o que criou um impasse jurídico-administrativo no País,
enquanto Santa Catarina ficou na expectativa.
Na disputa por limites, envolvendo questões de posse de terras
e exploraçãode ervais, três confrontos importantes antecederam a
Guerra do Contestado.
O primeiro: em dezembro de 1905 e em janeiro de 1906, na Vila
Nova do Timbó, Demétrio Ramos, ex-maragato, primo do governador
catarinense Vidal Ramos Júnior, depois de se desentender com
seu antigo desafeto Capitão Fabrício Vieira, ex-pica-pau, reuniu 600
homens e, por duas oportunidades, enfrentou a força policial do Paraná
e um destacamento do Exército.
O segundo: em setembro de 1909, o ex-maragato e catarinense Coronel
Aleixo Gonçalves de Lima, à frente de 500 homens da Guarda Nacional,
invadiu uma área que o Paraná dizia ser sua na Estrada Dona Francisca,
afugentando a força policial paranaense que protegia uma barreira de
impostos próxima a São Bento. A reação foi imediata, mas Aleixo retirouse
e entrou em Joinville como vitorioso, irritando o Governo do Paraná.
O terceiro: em outubro de 1912 o Governo do Paraná entendeu
como invasão catarinense a presença de um grupo civil que protegia
o retirante de Taquaruçu, monge José Maria em São João do Irani e
mandou o Regimento de Segurança para enfrentá-lo, o que aconteceu
no Combate do Banhado Grande.
Estrada de Ferro
Durante a questão de limites, em 1906, no interior nas terras
contestadas, entre os rios Iguaçu e Uruguai, marginais ao Rio do
Peixe, começou a ser construído um trecho de 372 km da Estrada de
Ferro São Paulo-Rio Grande, para efetuar a ligação entre Itararé (São
Paulo) e Santa Maria (Rio Grande do Sul). Ao mesmo tempo, desde
1911, estava em andamento na região a construção de outro trecho,
entre o porto de São Francisco do Sul e Porto União da Vitória (no
Rio Iguaçu), parte de uma projetada ferrovia que demandaria até
Assunção, no Paraguai.
Estes trechos, com obras vagarosas até 1908, foram
incorporados pelo truste do norte-americano Percival Farquhar, que
comprou a concessão federal e havia constituído a holding Brazil
Railway Company. Em pagamento, além da garantia de juros pelo
capital investido, a Companhia Estrada de Ferro São Paulo Rio-
Grande, que rasgou o Contestado com os trilhos – em forma de
cruz – de 1908 a dezembro de 1910, teve o direito de receber terras
devolutas, destinadas à colonização com imigrantes, revoltando a
população sertaneja local, que ficou impedida de requerer posse.
Para piorar o quadro, milhares de trabalhadores trazidos de várias
partes do país pela empresa, despedidos das obras entre 1911 e 1912,
se embrenharam no sertão.
Lumber Company
Atraído pela riqueza florestal da região contestada, cortada
vertical e horizontalmente pelas ferrovias, o mesmo Sindicato
Farquhar tratou de promover a instalação de uma serraria
monumental, a Southern Brazil Lumber & Colonization, com a
primeira unidade em Calmon (1908) e, logo depois, em Três Barras
(1912). De paranaenses, a empresa adquiriu milhares de hectares de
terras, cobertas pela Floresta da Araucária, utilizando métodos que
foram considerados fraudulentos, pois, parte dos títulos expedidos
pelo Paraná continham registros em duplicata em Santa Catarina,
isso porque ambos transferiam imóveis como terrenos devolutos
a fazendeiros-coronéis, políticos que usufruíam as benesses do
poder em cada Estado.
Já em 1911, na região de Canoinhas, pela perda de
terras, revoltaram-se, o ex-maragato Major Aleixo Gonçalves
de Lima, mais Bonifácio José dos Santos, o “Papudo” e Antonio
Tavares Júnior, catarinenses legítimos, todos desafetos dos próparanaenses
primos Thomas e Fabrício Vieira, criando confusões
armadas. Com seu Corpo de Segurança, fortemente municiado,
contratando apenas imigrantes como seus trabalhadores, a partir
de 1912 a Lumber começou a investir contra a população sertaneja
habitante no interior das matas, expulsando-a e, com isso, atraindo
a ira cabocla, também revoltada pelo abate indiscriminado dos
pinheiros centenários.
Messianismo e Misticismo
A maioria da população da Região do Contestado era formada
por uma população cabocla, pobre e inculta, de índios, negros e lusobrasileiros
que, ao longo dos anos, havia se internado nos sertões e
nos campos e vivia do cultivo de roças, criação de porcos selvagens,
extração da erva-mate, tropeirismo de carga e trabalhava nas fazendas
de criação de gado como peões ou agregados.
A forte ascendência portuguesa dos caboclos abrigava a
crença importada do sebastianismo lusitano. Assim, a população
revelava expressões de messianismo e de muito misticismo. Diante
da ausência praticamente total da Igreja Católica, os sertanejos
buscaram conforto espiritual nos monges, profetas, curandeiros, pregadores
e eremitas, que peregrinavam pela região, dentre eles destacando-se dois,
de nomes João Maria de Agostinho e João Maria de Jesus.
Quando os monges, confundidos como um só na figura imaginária
de São João Maria, desapareceram, surgiu outro, Miguel
Lucena de Boaventura, que adotou o nome de José Maria,
o qual, depois de sair do Palmas, no Paraná, chegou à região
de Taquaruçu, em Santa Catarina, onde
foi acolhido como irmão de João Maria e tido como “novo monge”.
O Superintendente de Curitibanos, Francisco Ferreira de Albuquerque,
sentindo ameaçada sua autoridade, anunciou retaliação, com o
que José Maria decidiu regressar ao Irani, nos campos-de-baixo de
Palmas, acompanhado por escolta popular.
Combate do Irani
O Paraná, que dava proteção ao Sindicato Farquhar, protegia
todas as terras na área do Vale do Timbó e a Oeste do Rio do Peixe,
que estavam sob sua administração. Mesmo assim, não conseguiu
impedir a instalação de alguns posseiros, na maioria ex-maragatos riograndenses,
como os Fragoso e os Fabrício das Neves, nos campos do
Irani. Ali, um grupo econômico paulista, ligado a Farquhar, que havia
adquirido a Fazenda Irani com a intenção de instalar a Companhia
Frigorífica e Pastoril, desistiu do plano e revendeu o imóvel a figuras
paranaenses importantes.
Em outubro de 1912, um pequeno grupo de catarinenses,
que havia acampado em Taquaruçu e ali formado um “quadrosanto”,
acompanhando o curandeiro José Maria, ao ser expulso
pelo Superintendente de Curitibanos, atravessou o Rio do Peixe,
refugiando-se no povoado de São João do Irani. Com o acirramento
das tensões na questão de limites e intrigas por terras, a atitude foi
considerada como uma invasão de catarinenses, merecedora de
retaliação armada.
O Paraná enviou à área uma expressiva força do seu Regimento
de Segurança para expulsar os pseudo-invasores, vindo a combater
com os defensores de José Maria no Banhado Grande, resultando na
morte do curandeiro e do comandante militar, além de dezenas de
envolvidos, o que provocou grande consternação em Curitiba.
Descaso governamental
As oligarquias que se consolidaram já nos primeiros tempos
da República Velha, enquanto no poder, desleixaram em relação ao
Território Contestado, permitindo que, aos homens bons que aqui se
instalavam, sem controle, misturassem-se aventureiros, pessoas de
má índole, perversas, desqualificadas social e moralmente.
As riquezas naturais da Região do Contestado só foram
percebidas pelo palácio florianopolitano depois que a estrada-deferro
rasgou o território, depois que a madeireira Lumber iniciou a
devastação da Floresta da Araucária, depois que enxergou o quanto o
Paraná arrecadava com impostos sobre os ervais nativos e depois que
constatou que, se houvesse um plebiscito, a população optaria pelo
Estado-presente, o Paraná, e pelo Governo-presente, o paranaense.
Os valores humanos desta região só foram percebidos quando já
era tarde demais. Ao invés de acolher, assistir, proteger e animar o
Homem do Contestado, tratando-o como catarinense legítimo, como
um desbravador, desprezou-o, preferindo ouvir os coronéis-de-roça e
os chefetes-de-aldeia que sustentavam a oligarquia às custas da pobre
gente cabresteada.
Percebe-se que os discursos veiculados pela imprensa nacional
e dos estados contribuíram, de alguma forma, para consolidar a
imagem do sertanejo como um mestiço inferior, através de suas
características de fanático e criminoso, dos militares como bravos
guerreiros e dos grandes proprietários de terras como vítimas do
conflito social que envolveu o homem do campo. Assim, ignoradas
questões de ordem social, política e econômica, o movimento do
Contestado foi lançado na história oficial a partir do pensamento
das elites intelectuais dominantes, que apenas retrata um modo de
pensar “branco”, a visão dos militares e o coronelismo da época. Esta
mesma linha de pensamento teve seqüência na História pelos oficiais
do Exército Brasileiro que escreveram sobre o conflito. A imagem
de um caboclo inculto, selvagem, bárbaro, fanático, desamparado,
analfabeto, bandido, criminoso, bandoleiro, terminologia de presença
constante na imprensa, quase que simultaneamente passou para as
obras dos oficiais do Exército.
Nacionalismo e Militarismo
A Guerra do Contestado aconteceu num momento em que
começava a criar raízes no Brasil a Liga de Defesa Nacional e a
Campanha do Serviço Militar, anunciadas futuras instituições que só
sensibilizariam a população, se fosse fortalecido o Exército Brasileiro.
Ao lado dos militares, muitas pessoas desempenharam este tipo
de apostolado cívico, pró-cidadania, pró-patriotismo, pró Exército.
Na sua gestão 1914-1918, Wenceslau Braz impôs sua liderança à
Nação. Para cativar os militares, utilizou todo o seu prestígio para
restaurar o comando presidencial sobre as Forças Armadas. Então,
deu continuidade ao programa de profissionalização do alistamento
militar, que havia sido iniciado em 1908 pelo Marechal Hermes da
Fonseca, ainda quando Ministro da Guerra, mas que não pôde
conduzi-lo enquanto Presidente, devido ao caos político reinante.
Em 1914, no tempo que precedeu a I Guerra Mundial, os brasileiros
tinham desviadas suas atenções sobre os problemas sociais e
políticos internos, para o entusiasmo pelo militarismo, patriotismo e
nacionalismo. O movimento cívico-patriótico brasileiro, que viria a
se intensificar a partir de 1917, canalizou-se na Liga de Defesa Nacional,
com a entrada do Brasil na Guerra, em outubro deste ano.
Coincidindo com o final da intervenção direta do Exército Brasileiro na
Guerra do Contestado, Olavo Bilac expunha seu pensamento sobre o
momento histórico da consciência nacional naqueles anos. Aderindo
à conclamação pelo serviço militar obrigatório no Brasil, Bilac denunciava
a falta de patriotismo, pregando que a Nação só se ergueria com
um Exército forte. As palavras de Olavo Bilac, também criticando as
elites políticas brasileiras, aplaudidas pelos militares, servem para
justificar - entre outras justificativas - porque as operações de forças
do Exército Brasileiro eram sobejamente destacadas e valorizadas
pela imprensa (nacionalista e patriótica) e porque as intervenções de
seus oficiais (heróis nacionais) ganhavam brilho em todas as páginas,
como aconteceu durante e depois da Guerra do Contestado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nilson, me criei na região do Contestado. Meu avô era jagunço. Agora entendo porque os meus pais e avós sempre se sentiram inferiorizados em relação a esses tais de coronéis. Parabéns em colocar o lado do povo sofrido nesta história que até então só era contada pelas fontes oficiais. Leia-se o Estado e os coronéis.
Parabéns
Neto de Jagunçoa